Das galés às galerias

(Das galés às galerias ou a história da arte brasileira preta e invisível) 

Hoje foi dia de rolezinho no centro do Rio. Neste rolezinho reuniram-se vários artistas pretos e pretas de diferentes gerações nas salas da exposição “Das galés as galerias”.  Na verdade, os rolezinhos iniciados há três anos em São Paulo por grupos de artistas negros ativistas mostram quanto o campo das artes visuais assim como outros espaços sociais também se encontram em disputa. Escrever sobre esta exposição nos faz relembrar Stuart Hall em “A Identidade Cultural na Pós-Modernidade” porque ele antecipou elementos no debate altamente combustível sobre “apropriação cultural”. Para o antropólogo jamaicano, na globalização algumas identidades gravitam ao redor da tradição em busca de uma pureza anterior enquanto outras identidades estão sujeitas à história, à política, a representação, a diferença. Esta reflexão é necessária para nos esquivarmos de um pensamento binário no tratamento de um fenômeno dinâmico: cultura. Isto significa explicitar tensões relacionadas a cor do grupo social hegemônico, além de sublinharmos, lado a lado, a necessidade de expandir a legitimidade de grupos étnicos-raciais historicamente apagados pela história da arte. Especialmente as artistas plásticas negras. A questão toda é: dentro e fora da arte contemporânea, como buscarmos análises mais complexas relacionadas ao fenômeno estético que deem conta de um “lugar de fala” intercultural?

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Das galés, embarcação usada para o transporte de negros escravizados do continente africano ao Brasil contemporâneo das artes visuais, um dos campos de maior invisibilidade negra de nossa sociedade. No módulo de abertura da exposição no Museu Nacional de Belas Artes temos representações de viajantes e artistas do período colonial: Frans Post, Pallière, Rugendas, Debret e um contraponto importante na gravura de Newton Cavalcanti. No segundo módulo há diálogos com a ideologia do embranquecimento pós-Abolição e a visão de intelectuais modernos. Ali encontramos o misterioso retrato do pintor Firmino Monteiro (1855 – 1888) de autoria de Emma Mourox e uma emblemática tela emprestada da galeria do século XIX da instituição: “Redenção de Cam” (1895) do espanhol Modesto Brocos. O ponto alto, localizado pelo curador Reginaldo Tobias, é a pintura “Mãe Maria” na qual Orózio Belém conquistou o Prêmio de Viagem ao Exterior no Salão de Belas Artes em 1945. Na última parte, o texto da mostra assinala um Brasil atravessado pela discriminação racial onde “o acesso e o reconhecimento no campo artístico esbarravam e esbarram nas hierarquias raciais e sociais”. Neste módulo destacamos um trabalho de Fernando Diniz e uma pintura de modelo vivo pouco conhecida de Arthur Timóteo da Costa (1882 – 1922), além de duas ausências: mais artistas negros contemporâneos, salvo a exceção de Emanoel Araújo. Quem sabe o Museu de Belas Artes, cujo mérito pela exposição é notório, tem interesse em contemplar esta possibilidade mais adiante?

Escrever algumas linhas sobre uma história da arte brasileira preta invisível é também compartilhar uma lembrança que levei ao sair da exposição com uma ponta de alegria. Alegria em ver “Paisagem do Rio de Janeiro” e “Uma Chácara em Niterói” ambas telas de Antonio Rafael Pinto Bandeira (1863 – 1896) artista que organizei uma monografia a partir de bolsa concedida no I Edital de Pesquisadores Negros da Fundação Biblioteca Nacional com um importante depoimento do pintor Israel Pedrosa (1926 – 2016). Cabe confessar uma grande dificuldade enfrentada na realização deste trabalho: somente após alertar autoridades governamentais do Rio de Janeiro obtive acesso ao maior acervo deste artista, fato considerado por alguns como racismo e por outros, descaso. No que você acreditaria? Neste caminho o certo é que Pinto Bandeira manteve contato com o acadêmico Coelho Neto, participou da execução dos painéis na Igreja da Candelária e foi aluno do revolucionário Georg Grimm (1846 – 1887). A história da arte brasileira exalta a ligação de Grimm com Antonio Parreiras e Castagneto, mas pouco comenta a relação com Bandeira e outros artistas negros do período. Da mesma forma, a historiografia oficial não enfatiza o peso intelectual de artistas pretos e pretas; no caso de Bandeira localizamos em Salvador a sua proposta de reforma no Liceu de Artes da Bahia. O tempo presente envolve uma ferrenha disputa por narrativas: na próxima semana, como parte das ações de “Das galés às galerias”, o MNBA receberá uma intervenção artística da Frente Artística Negra (FAN) liderada pelo cantor e compositor Mombaça, uma nova oportunidade para refletirmos (30 de maio de 2018).