Ensaio crítico para o catálogo da exposição coletiva promovida pela Galeria Zagut em março de 2021

Oswaldo Goeldi (1895 – 1961) é um dos mais notáveis artistas modernos no Brasil. Mestre no uso da luz e da sombra, destacado ilustrador e fluente desenhista, ele é um dos precursores da gravura brasileira por sua coerência artística ao não abrir mão de sua pesquisa gráfica por qualquer tipo de lugar-comum. No exímio ensaio de José Maria dos Reis Júnior (1981) a obstinada defesa do fazer xilográfico de Goeldi é equiparada a nobreza deSão Francisco de Assis” por Rachel de Queiroz ao revelar em sua goiva a “irrealidade do real” nas palavras de Carlos Drummond de Andrade. E Reis Júnior arremata:

Num país como o Brasil, ainda carente de espíritos generosos, sobretudo no meio artístico, mais disposto a picuinhas e invejas, não deixa de ser profundamente impressionante o coro unânime de entusiasmo em torno de um artista falando através de um processo tão modesto de recursos, tão pouco ostentoso; e artista que jamais se filiou a uma escola, jamais cortejou críticos ou promoções oficiais, arredio dos eventos sociais que era, pobre, paupérrimo e, sobre isso, cioso de sua personalidade: “nunca sacrifiquei a qualquer modismo o meu próprio eu” (1981, p. 105).

O seu interesse é o cotidiano, a rua e a simplicidade dos personagens anônimos envoltos em fantasmagóricas cidades. De acordo com Fajardo, Sussekind e Vale (1999, p. 33):

Seu trabalho é radicalmente expressionista, marcado por uma luz diferente, sobrenatural. Seus temas: o submundo da miséria, tratado com humanidade e ao mesmo tempo com exagero. Seus cenários: o mercado de peixe onde os animais marinhos agonizam entre trabalhadores, cachorros, balanças, fregueses. Ou então a monotonia suburbana, com postes de luza que brilham solitários no meio da noite, com a figura da morte emergindo em meio a lufadas de vento. Urubus projetam o chão sua sombra lúgubre, homens de capa e mendigos tentam proteger-se da chuva. Ou ainda um guarda-chuva vermelho que surge, sanguíneo, no meio do preto e branco.

A nobreza do artista ao lidar com o que à primeira vista parece banal, em uma exata compreensão do registro poético da vida social influenciou o cinema de Leon Hirszman (1937 – 1987) no documentário Nelson Cavaquinho (1969). De acordo com o artista plástico Nuno Ramos, na excepcional fotografia de Mario Carneiro, a última tomada do curta-metragem revela “uma composição que remete diretamente, com incrível fidelidade, ao mundo das xilogravuras de Goeldi” (www.leonhirszman.com.br).

Goeldi também influenciou o ensino moderno de gravura no Brasil em um nítido diálogo com a mais importante criação do pintor Augusto Rodrigues (1913 – 1993) ao atuar no início da década de 1950 como professor para adultos na Escolinha de Arte do Brasil. Ali, ele doou à instituição o seu equipamento de impressão e participou da formação de importantes artistas como Anna Letycia Quadros (1929 – 2018), idealizadora, anos mais tarde, da Oficina de Gravura do Museu do Ingá em Niterói/RJ.

O auge da maturidade artística de Goeldi coincide com a sua contratação como professor de Gravura a partir de 1955 na Escola de Belas Artes da UFRJ. Ao chegar a instituição ele já tinha uma premiação na I Bienal de São Paulo (1951) e consolidou-se como um dos expoentes do expressionismo moderno na bicentenária instituição artística. Tendo como Assistente o artista Adir Botelho, orientou incontáveis talentos, entre eles, Rubens Gerchmann, cuja posterior gestão pioneira na Escola de Artes Visuais do Parque Lage ofereceu ênfase ao método livre de Goeldi.

Este estímulo a liberdade criadora é sublinhado nas percepções de diferentes artistas com trajetória no Atelier de Gravura da Escola de Belas Artes que destacamos abaixo. O primeiro depoimento é de seu dileto discípulo Adir Botelho, criador na década de 1970 do Curso de Bacharelado em Gravura na UFRJ e Professor Catedrático na mesma instituição. Nas palavras de Botelho:

O comportamento de Goeldi como professor era bastante diferente, o trabalho de cópia foi abandonado e, mesmo nos exercícios com a linha, este valorizava uma atitude criadora por parte do autor. Isso ficou bem nítido e hoje, talvez tenha sido a transformação mais radical (TÁVORA, 1997, p. 438).

Isa Aderne (1923 – 2019) não foi aluna de Goeldi, mas observou o impacto de sua orientação na Escola:

Quando eu cheguei no Goeldi e vi aquela liberdade pensei: ah! Isso é que eu estava procurando, isso é que eu precisava! Ele deixava o aluno trabalhar com suas próprias ideias (TÁVORA, 1997, p. 438).

Já Marília Rodrigues (1937 – 2009) o acompanhou durante todo o ano de 1960:

Nunca vi Goeldi colocar a mão no trabalho de um aluno. Tinha métodos de estimulação, mostrava a necessidade de retrabalhar as áreas de volume, os traços, mas as soluções de gravura, o conteúdo expressivo deveria ser encontrado pelo artista. Essa metodologia marcou minha vida futura como professora (TÁVORA, 1997, p. 439).

Newton Cavalcanti (1930 – 2006) revela ter realizado um trabalho intitulado “pavão misterioso”, com referência a xilogravura de cordel:

Goeldi gostou muito, prendeu na parede da Escola, chamou muita gente para ver e comecei a me animar com aquilo. Ele disse que eu deveria levar minha fantasia adiante (TÁVORA, 1997, p. 439).

Para concluir, a artista Léa Soibelman traz esta importante rememoração em especial depoimento concedido para a exposição “Goeldi gênio brasileiro”:

Eu estava acabando o Curso de Pintura e deram para o Goeldi uma salinha o que eu achava na época um desaforo para um artista como ele. Não era um curso oficial e ele me passou muita liberdade, algo que a maioria dos professores na Belas Artes não fazia.

Bibliografia

FAJARDO, Elias; SUSSEKIND, Felipe; VALE, Márcio do. Oficinas: gravura. RJ: SENAC, 1999.

Reis Júnior. Carlos Oswald, Raimundo Cela, Oswaldo Goeldi. In: SOUZA, Wladimir Alves de (org.). Aspectos da arte brasileira. RJ: FUNARTE, 1981.

TAVORA, Maria Luisa Luz. Primórdios do ensino da gravura artística na Escola Nacional de Belas Artes: algumas considerações. Anais do Seminário EBA 180 (180 anos da Escola de Belas Artes). Pós-Graduação da EBA/UFRJ, Rio de Janeiro, 1997.

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