O Humanismo social de Oswaldo Goeldi

Ensaio crítico para o catálogo da exposição coletiva promovida pela Galeria Zagut em março de 2021

Oswaldo Goeldi (1895 – 1961) é um dos mais notáveis artistas modernos no Brasil. Mestre no uso da luz e da sombra, destacado ilustrador e fluente desenhista, ele é um dos precursores da gravura brasileira por sua coerência artística ao não abrir mão de sua pesquisa gráfica por qualquer tipo de lugar-comum. No exímio ensaio de José Maria dos Reis Júnior (1981) a obstinada defesa do fazer xilográfico de Goeldi é equiparada a nobreza deSão Francisco de Assis” por Rachel de Queiroz ao revelar em sua goiva a “irrealidade do real” nas palavras de Carlos Drummond de Andrade. E Reis Júnior arremata:

Num país como o Brasil, ainda carente de espíritos generosos, sobretudo no meio artístico, mais disposto a picuinhas e invejas, não deixa de ser profundamente impressionante o coro unânime de entusiasmo em torno de um artista falando através de um processo tão modesto de recursos, tão pouco ostentoso; e artista que jamais se filiou a uma escola, jamais cortejou críticos ou promoções oficiais, arredio dos eventos sociais que era, pobre, paupérrimo e, sobre isso, cioso de sua personalidade: “nunca sacrifiquei a qualquer modismo o meu próprio eu” (1981, p. 105).

O seu interesse é o cotidiano, a rua e a simplicidade dos personagens anônimos envoltos em fantasmagóricas cidades. De acordo com Fajardo, Sussekind e Vale (1999, p. 33):

Seu trabalho é radicalmente expressionista, marcado por uma luz diferente, sobrenatural. Seus temas: o submundo da miséria, tratado com humanidade e ao mesmo tempo com exagero. Seus cenários: o mercado de peixe onde os animais marinhos agonizam entre trabalhadores, cachorros, balanças, fregueses. Ou então a monotonia suburbana, com postes de luza que brilham solitários no meio da noite, com a figura da morte emergindo em meio a lufadas de vento. Urubus projetam o chão sua sombra lúgubre, homens de capa e mendigos tentam proteger-se da chuva. Ou ainda um guarda-chuva vermelho que surge, sanguíneo, no meio do preto e branco.

A nobreza do artista ao lidar com o que à primeira vista parece banal, em uma exata compreensão do registro poético da vida social influenciou o cinema de Leon Hirszman (1937 – 1987) no documentário Nelson Cavaquinho (1969). De acordo com o artista plástico Nuno Ramos, na excepcional fotografia de Mario Carneiro, a última tomada do curta-metragem revela “uma composição que remete diretamente, com incrível fidelidade, ao mundo das xilogravuras de Goeldi” (www.leonhirszman.com.br).

Goeldi também influenciou o ensino moderno de gravura no Brasil em um nítido diálogo com a mais importante criação do pintor Augusto Rodrigues (1913 – 1993) ao atuar no início da década de 1950 como professor para adultos na Escolinha de Arte do Brasil. Ali, ele doou à instituição o seu equipamento de impressão e participou da formação de importantes artistas como Anna Letycia Quadros (1929 – 2018), idealizadora, anos mais tarde, da Oficina de Gravura do Museu do Ingá em Niterói/RJ.

O auge da maturidade artística de Goeldi coincide com a sua contratação como professor de Gravura a partir de 1955 na Escola de Belas Artes da UFRJ. Ao chegar a instituição ele já tinha uma premiação na I Bienal de São Paulo (1951) e consolidou-se como um dos expoentes do expressionismo moderno na bicentenária instituição artística. Tendo como Assistente o artista Adir Botelho, orientou incontáveis talentos, entre eles, Rubens Gerchmann, cuja posterior gestão pioneira na Escola de Artes Visuais do Parque Lage ofereceu ênfase ao método livre de Goeldi.

Este estímulo a liberdade criadora é sublinhado nas percepções de diferentes artistas com trajetória no Atelier de Gravura da Escola de Belas Artes que destacamos abaixo. O primeiro depoimento é de seu dileto discípulo Adir Botelho, criador na década de 1970 do Curso de Bacharelado em Gravura na UFRJ e Professor Catedrático na mesma instituição. Nas palavras de Botelho:

O comportamento de Goeldi como professor era bastante diferente, o trabalho de cópia foi abandonado e, mesmo nos exercícios com a linha, este valorizava uma atitude criadora por parte do autor. Isso ficou bem nítido e hoje, talvez tenha sido a transformação mais radical (TÁVORA, 1997, p. 438).

Isa Aderne (1923 – 2019) não foi aluna de Goeldi, mas observou o impacto de sua orientação na Escola:

Quando eu cheguei no Goeldi e vi aquela liberdade pensei: ah! Isso é que eu estava procurando, isso é que eu precisava! Ele deixava o aluno trabalhar com suas próprias ideias (TÁVORA, 1997, p. 438).

Já Marília Rodrigues (1937 – 2009) o acompanhou durante todo o ano de 1960:

Nunca vi Goeldi colocar a mão no trabalho de um aluno. Tinha métodos de estimulação, mostrava a necessidade de retrabalhar as áreas de volume, os traços, mas as soluções de gravura, o conteúdo expressivo deveria ser encontrado pelo artista. Essa metodologia marcou minha vida futura como professora (TÁVORA, 1997, p. 439).

Newton Cavalcanti (1930 – 2006) revela ter realizado um trabalho intitulado “pavão misterioso”, com referência a xilogravura de cordel:

Goeldi gostou muito, prendeu na parede da Escola, chamou muita gente para ver e comecei a me animar com aquilo. Ele disse que eu deveria levar minha fantasia adiante (TÁVORA, 1997, p. 439).

Para concluir, a artista Léa Soibelman traz esta importante rememoração em especial depoimento concedido para a exposição “Goeldi gênio brasileiro”:

Eu estava acabando o Curso de Pintura e deram para o Goeldi uma salinha o que eu achava na época um desaforo para um artista como ele. Não era um curso oficial e ele me passou muita liberdade, algo que a maioria dos professores na Belas Artes não fazia.

Bibliografia

FAJARDO, Elias; SUSSEKIND, Felipe; VALE, Márcio do. Oficinas: gravura. RJ: SENAC, 1999.

Reis Júnior. Carlos Oswald, Raimundo Cela, Oswaldo Goeldi. In: SOUZA, Wladimir Alves de (org.). Aspectos da arte brasileira. RJ: FUNARTE, 1981.

TAVORA, Maria Luisa Luz. Primórdios do ensino da gravura artística na Escola Nacional de Belas Artes: algumas considerações. Anais do Seminário EBA 180 (180 anos da Escola de Belas Artes). Pós-Graduação da EBA/UFRJ, Rio de Janeiro, 1997.

Vai ter uma festa

Ensaio crítico para o catálogo da exposição coletiva “Carnaval” promovida pela Galeria Zagut em fevereiro de 2021

Em 2019 o livro Carnavais, malandros e heróis de Roberto Da Matta completou quarenta anos de uma contundente interpretação ao contrastar olhares sobre os bailes, blocos e desfiles; a semana da Pátria e; as procissões religiosas. Esta análise antropológica mudou paradigmas e investiga o país sob a ótica do Carnaval tendo como fontes de inspiração Edmund Leach, Victor Turner, Arnold Van Gennep e Claude Lévi-Strauss. O desdobramento visual desta contribuição ímpar de Da Matta está no ensaio Universo do Carnaval: imagens e reflexões (1981), quando ao lado do fotógrafo João Poppe, os festejos são descortinados por vértices, como por exemplo, a feminização do mundo, a orgia carnavalesca, e, o relativismo sobre a morte e o sagrado, temas abordados, respectivamente, em filmes como Damas do Samba (2013), A Lira do Delírio (1978) e Orfeu Negro (1959).

Em perspectiva semelhante temos o multiartista Arthur Omar com a série Antropologia da Face Gloriosa apresentada na Bienal de São Paulo de 1997, com quase cem imagens de grandes dimensões, em preto e branco. Nesta instalação fotográfica, o êxtase carnavalesco, alcança uma representação distante do universo visual de Debret ou Di Cavalcanti, mas próxima da dimensão contemporânea de “estar possuído” vista nos Parangolés de Hélio Oiticica na década de 1960. Esta ênfase contemporânea, em uma abordagem plural construída por vídeos, música eletrônica e artes plásticas, também foi contemplada pelo curador Alfons Hug na coletiva Carnaval no Centro Cultural Banco do Brasil em 2004, com destaque para a instalação Se Fosse Tudo Sempre Assim do cineasta Karim Aïnouz.

Com alegria recebi um convite para escrever estas linhas na honrosa lembrança do Augusto Herkenhoff e suspeito que esta escolha, para além das atividades universitárias no campo artístico, muito se relaciona com o meu recente engajamento folião no bloco Cacique de Ramos. Neste ano, o Cacique completa sessenta anos de fundação e é um dos grandes destaques do carnaval de rua do Rio de Janeiro, se observarmos que há outras narrativas para além daquelas já consagradas do chamado ressurgimento visto na zona sul entre as décadas de 1980 e 2000. É sempre válido rever as imagens fotográficas do tradicional bloco da zona norte registradas pelo artista Carlos Vergara em princípios da década de 1970. Nas palavras de Vergara: não sou um artista isolado do mundo. Essa possibilidade de trabalhar o Cacique foi muito gratificante e me ensinou muito, aproximou-me da produção anônima, do desejo de discurso político que existe na população como um todo. Uma ação de discurso artístico popular (Revista DASartes número 84, 13 de maio de 2019).

Neste momento de intensa expectativa pela vacinação, mesmo com o adiamento da folia, ainda é possível sermos afetados pelo Carnaval. O ano de 2021 nos reserva uma festa diferente; pela arte e também pela saúde, como o Espaço Zagut sempre procurou sublinhar em sua trajetória. Nesta coletiva vemos uma ampla pesquisa de artistas visuais de diferentes matrizes sobre o espírito carnavalesco. Os trabalhos procuram dialogar com um universo lírico e intercultural, originando assim, um conjunto que segue livremente as palavras do poeta Chacal em Rápido e Rasteiro: Vai ter uma festa, que eu vou dançar até o sapato pedir pra parar. Aí eu paro, tiro o sapato e danço o resto da vida.

Santa Teresa de Portas Abertas aposta na democratização da cultura

Entrevista para o Site UOL em 31/8/2018. Por Kamille Viola

Um dos mais charmosos bairros do Rio, Santa Teresa é chamada de “a Montmartre Carioca”, em referência ao famoso bairro de Paris, já que ambos possuem em comum, além das características geográficas (estão no alto), uma grande profusão de artistas e boêmios vivendo lá. Neste fim de semana, as ruas do lugar serão tomadas pela 28ª vez pelo Santa Teresa de Portas Abertas, em que artistas abrem seus ateliês e convidam o público a visitá-los, conhecer seus processos e participar de conversas.

O evento também acontece nos espaços culturais da região e terá intervenções urbanas, música e performances. Os bares e restaurantes da vizinhança também fazem parte do roteiro. Os bares e restaurantes da vizinhança também fazem parte do roteiro. A abertura é neste sexta (31.08), no Centro Cultural Laurinda Santos Lobo (Rua Monte Alegre, 306).  Também lá, haverá atrações como troca de livros (quem levar um poderá trocá-lo por outro) e a apresentação do espetáculo “O último delírio de Van Gogh”, com ator Rafael Mannheimer, nesta sexta e sábado, às 16h. O encerramento acontece no domingo, dia 2, às 19h, no Largo das Neves, com o Maracatu Baque Mulher.

Para Alexandre Palma, presidente da Chave Mestra, Associação de Artistas Visuais de Santa Teresa e realizadora do evento, o mais importante é a possibilidade de democratização da cultura. “O imaginário social ainda consagra os museus de portas fechadas. Aqui no Arte de Portas Abertas, a experiência única dos ateliês oferece a não distinção entre público e criadores”, conta. Confira abaixo entrevista que fiz com ele.

O Rio está passando por uma grave crise. Qual a importância de se realizar o Santa Teresa de Portas Abertas num momento como esse? A opção pelo evento é uma resposta dos artistas a essa enorme contradição brasileira. Uma contradição brasileira que atravessa as artes visuais e também as diferentes linguagens e manifestações artísticas: apesar de todo carioca se relacionar com a arte em suas múltiplas expressões, ainda temos restrições no plano das políticas culturais. No entanto, mesmo com um momento de incertezas após um período de avanço democrático no Brasil, ainda há a Santa Teresa de memória que insiste em se manter bela como a cidade do Rio de Janeiro.  É a Santa Teresa de Djanira, Roberto Moriconi, Inimá de Paula, Mestre Messias até chegar hoje ao coletivo de artistas visuais da Chave Mestra.

A cidade também tem sofrido com o aumento progressivo da violência. Qual a importância de ocupar as ruas do bairro em um contexto com esse? A 28ª edição é oferecida para a população em um momento de grande adversidade para a cidade Rio de Janeiro e é uma aposta na tradição do evento, ao mantermos as portas abertas dos ateliês e também nos renovarmos, no diálogo com o contemporâneo e também observarmos a necessidade de articular arte, direitos humanos e responsabilidade social. Por isso a nossa parceria com o Projeto Pontes de Saberes, que chega em Santa Teresa com a opção de realizar oficinas para homens e mulheres em vulnerabilidade social. Essa proposta é uma retomada aos ideais de ocupação do evento em suas primeiras edições nos diferentes territórios urbanos frente a um momento de crise. Ocupação com arte, como nos sinalizaram Xico Chaves e Martha Niklaus, dois artistas visuais importantes e que integraram como convidados a Comissão de Ocupação da convocatória “Arte e resistência”. Com as ocupações, com essas intervenções urbanas propostas, o evento oferece uma resposta não apenas simbólica, mas também concreta no plano artístico porque o olhar da arte contemporânea também é cidadão, ao problematizar determinados guetos conceituais.

É a 28ª edição do evento. Quais foram os elementos que possibilitaram essa longevidade? Tem muito a ver com a ativa participação dos artistas sócios da Chave Mestra, Associação dos Artistas Visuais de Santa Teresa, os grandes protagonistas, e também a população da cidade do Rio de Janeiro que prestigia este evento em sua 28ª edição. Não temos nesta edição nenhum tipo de patrocínio, somente apoios colaborativos de órgãos privados, artistas, espaços culturais e empreendedores do bairro.

Do ano passado para cá temos vivido momentos de ataques a trabalhos artísticos no Brasil. Como o Santa Teresa de Portas Abertas se posiciona em meio a esse cenário? O mais relevante nas inúmeras abordagens artísticas é a possibilidade de democratização da cultura. Mesmo com as recentes mudanças nos circuitos museológicos, o imaginário social ainda consagra os museus de portas fechadas. Aqui no Arte de Portas Abertas, a experiência única dos ateliês oferece a não distinção entre público e criadores. Nessa vivência proporcionada pelos artistas, desconstruímos e aprendemos diferentes maneiras de se relacionar com a arte. Isso é muito importante para novos significados sobre o lugar social da arte e do artista. E também para a reflexão sobre determinados preconceitos em relação à arte. Essa frase do sociólogo Jean Duvignaud no livro “La genèse des passions dans la vie sociale” (“A gênese das paixões na vida social”, em tradução livre) norteia o evento e é fundamental para compreendermos possíveis olhares sobre a arte e o Brasil a menos de 45 dias das eleições de outubro: “Ligamo-nos a um amigo e, em seguida, o achamos inteligente. O amor dedicado a uma mulher faz que a achemos bela. A causa que recebe a nossa adesão legitima a sua justeza. Deixamo-nos fascinar por uma obra de arte, e ela nos parece estética.”

https://rioadentro.blogosfera.uol.com.br/2018/08/31/santa-teresa-de-portas-abertas-aposta-na-democratizacao-da-cultura/

Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse

O célebre conjunto de gravuras “Apocalipse” de Albrecht Dürer (1471 – 1528) revela uma atmosfera de descrença. Como o mundo se aproximava de 1500, muitos acreditavam que a Terra estava com os dias contados.

Umberto Eco reconheceu a possibilidade de novos olhares sobre a Idade Média; hoje, porém, a atmosfera social brasileira nos leva a uma paradoxal sensação de descrença no futuro.

A explicitação de inúmeros retrocessos após um período de avanço democrático ainda cerceia a plena realização artística, mas essa incredulidade não intimida Clara Cavendish, Juliano Guilherme, Nilton Pinho e Otavio Avancini.

“Arte não é adorno, palavra não é absoluta, som não é ruído, e as imagens falam” disse Augusto Boal. E todos os quatro artistas estão lidando com a arte. Antes da intenção, quer seja ela política ou não, a arte se afirma.  

E Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse aqui se reafirmam e também celebram uma longa amizade amadurecida nos ateliês do Casarão da Lapa. Como diz Otavio Avancini, fluente no uso da cor e do gesto, “todos assumem múltiplas linguagens nesta coletiva concebida como uma grande instalação barroca e elegem Bukowski como poética inspiradora”.

Nilton Pinho segue uma tradição brasileira da assemblage com a série “Bancada de Camelô”, uma aposta no efêmero cuja verdade se articula ao caos urbano. Ao seu lado, Juliano Guilherme revela a conotação visceral de sua pintura Hiperexpressionista e traz um São Jorge com uma citação ao trio de artistas cariocas Jorge Guinle, Hélcio Jorge Barros e Jorge Duarte. E a única amazona entre o quarteto cujo repertório exibe diálogo com a permanência da pintura e não se abstém da transgressão é Clara Cavendish.

Engajamento, sociabilidade e a política atravessam a vida dos artistas e também do público no tempo presente. Como ficar alheio a este momento em que a própria prática artística pode ser compreendida como um tipo de discurso estético-político? Como afirma Jacques Rancière em “O Destino das Imagens” (Editora Contraponto, RJ – 2002, p. 98), “o plano ideal do quadro é um teatro da desfiguração, um espaço de conversão onde a relação entre as palavras e as formas visuais antecipa as desfigurações visuais ainda por vir” (em 25 de agosto de 2018).

Os Setenta Anos da Escolinha de Arte do Brasil

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Precisamente em 8 de julho de 1948, Augusto Rodrigues, artista plástico, jornalista, caricaturista, junto com um pequeno grupo de educadores plantavam no jardim da biblioteca do então IPASE, no centro do Rio, a semente de uma árvore que iria florescer, dar frutos vigorosos para a educação e a cultura brasileiras. Nascia a Escolinha de Arte do Brasil com algumas crianças dispostas a participar da experiência de desenhar, pintar, na mais completa liberdade de expressão.

Pouco a pouco, essa experiência crescia e começava a se projetar no cenário da sociedade carioca, atraindo o interesse de artistas renomados como Osvaldo Goeldi, Fayga Ostrower ou Abelardo Zaluar, poetas como Carlos Drummond de Andrade e Ferreira Gullar, educadores do porte de Helena Antipoff e Anísio Teixeira e tantos outros prestigiados artistas, educadores, intelectuais que vieram participar de suas atividades, de seus cursos e do providencial almoço, oportunidade para conversas estimulantes, com troca de ideias, informações, comunhão de propósitos que o ambiente da Escolinha inspirava.

Instalada em ampla cobertura de um edifício na avenida Marechal Câmara, no centro da cidade, logo vieram as exposições de desenhos e pinturas das crianças, uma delas inaugurada pelo Presidente Juscelino Kubitschek, que seria apresentada em Londres, com patrocínio de Herbert Read, ideólogo da filosofia da Educação através da Arte.

Sensível à arte do povo, Augusto Rodrigues abriu o espaço para exposições do mestre Vitalino de Caruaru, com seus bonecos de barro, e do pintor Heitor dos Prazeres.

Com suporte institucional do Ministério da Educação, por iniciativa de Anísio Teixeira, diretor do INEP, a Escolinha começou a receber professores da rede pública dos estados para cursos de aperfeiçoamento e recreação, o que alertou Augusto para a necessidade de buscar uma educadora com formação pedagógica universitária para coordenar esses cursos. Para tanto, a Professora Noêmia Varela, com essa formação, veio do Recife para realizar esse fecundo trabalho, daí surgindo o CIAE (Curso Intensivo de Arte na Educação), reunindo professores do nível de Darcy Ribeiro, para a Antropologia; Nise da Silveira e  Pedro Ferreira, para a Psicologia Analítica; Cecília Conde, para a Música; Maria Helena Novaes Mia, para a Pedagogia; Monique Augras, para a Psicologia Educacional; Ilo Krugli e Pedro Domingues, para o Teatro; Isabel Maria de Carvalho Vieira, para a Literatura Infantil; Sérgio Campos Melo, para as Artes Plásticas; e Orlando da Silva, Marília Rodrigues e José Altino, para a Gravura em metal e Xilogravura.

Nessa fase, Augusto articulou-se com Ziraldo, tendo em vista um projeto gráfico para o jornal da Escolinha, indicando a Iara Rodrigues (diretora de escolinha similar em Porto Alegre) o contato com o designer e escritor. Naquela mesma noite, Ziraldo fez a logomarca do jornal e propôs diretrizes para a feição gráfica, saindo o primeiro número em setembro de 1970.

A experiência foi-se expandindo pelo país e América Latina, sendo promovidos seminários e encontros como o Latino-Americano, coordenado por Cecília Conde, centrado no tema “A Arte do Povo na Educação”. Coroando esses eventos, veio o Congresso Mundial para a Educação Através da Arte, com patrocínio da INSEA (Sociedade Internacional de Educação através da Arte), presidido por Zoé Chagas Freitas, voltado para o tema: “O Terceiro Mundo e a Educação através da Arte”.

Ao longo desses setenta anos, não faltaram dificuldades de toda ordem. Em 1993, Augusto Rodrigues partiu para outra dimensão existencial. Coube a Orlando Miranda, profissional ligado ao Teatro, assumir a presidência da Escolinha, ficando a direção técnica com a Professora Rosza Vel Zoladz do quadro da Pós-Graduação em Antropologia da Arte da Escola de Belas Artes da UFRJ, que deu continuidade aos cursos para crianças e para adultos, contando com o apoio da arte-educadora Helena Trigo em sua realização.

Houve uma fase de estio após a saída de Rosza, mas a chama da Escolinha não se apagou graças a uma parceria institucional, em desenvolvimento, entre a Escolinha de Arte do Brasil e o Instituto Arte na Escola. A revitalização foi marcada pela célebre noite do dia 16 de agosto de 2017, na Escolinha de Arte do Brasil, com exposição, palestra e arrebatadora performance do Grupo Cultural Jongo da Serrinha, uma tentativa de renovar no presente o olhar precursor de Augusto Rodrigues para Heitor dos Prazeres e Vitalino. A iniciativa desdobrou-se em grupos de estudos, oficinas e proposta de viagem no dia 17 de julho de 2018 para Inhotim, um dos maiores centros de arte contemporânea do país. Ao mesmo tempo, em outra frente de ação, buscam-se apoios necessários para a construção da Associação de Amigos da Escolinha de Arte do Brasil, deixando entrever um renascimento da experiência de educação através da arte em nosso meio, tendo por eixo este pensamento de Augusto Rodrigues: “Educação não deve ser um processo de humilhação, mas de libertação do homem”.

Publicado no Caderno B do JORNAL DO BRASIL em 8 de julho de 2018 em co-autoria com Jader de Medeiros Britto, graduado pela Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil e um dos organizadores do Dicionário de Educadores no Brasil (Editora da UFRJ).

Veja a matéria “Escolinha de Arte do Brasil completa 70 anos com novos projetos” do Caderno Zona Sul de O Globo em 7 de julho de 2018:

Para que serve a Praça da Apoteose?

Para que serve a “Praça da Apoteose” com seu imponente arco no Rio de Janeiro? Qual a sua função na Passarela do Samba? O conjunto idealizado por Darcy Ribeiro e concebido pelo genial Oscar Niemeyer é um monumento arquitetônico único onde os sambistas alcançam o esplendor da festa carnavalesca. Passadas mais de três décadas entendemos que esta obra de arte somente foi possível porque em meio à a queda de braço com a Rede Globo parte da opinião pública foi convencida com a pragmática criação de sete escolas sediadas no interior da Passarela do Samba. Como relata Luiz Augusto Erthal, após dois encontros onde Leonel Brizola apresentou a proposta de escola integral à Roberto Marinho, o jornalista disse: Olha, governador, se o senhor quer construir escolas, está muito bem. Mas não precisa disso tudo. Faça umas escolinhas…”

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E o que aconteceu no Rio de Janeiro na Praça da Apoteose após o primeiro desfile de 1984 foi o contrário. Em vídeo postado no youtube em 2018 o poeta Geraldo Carneiro pergunta ao líder gaúcho: “o senhor acaba de ver a Mangueira sair da avenida misturada com o povo e não sabia onde terminava a Mangueira e onde começava o povo. Isso é um indício de que vai se consolidar a democracia brasileira?” A história do Carnaval explica melhor a indagação do hoje integrante da Academia Brasileira de Letras: a Mangueira foi a única a subir a Passarela do Samba, evoluir sob o arco da Praça da Apoteose e depois voltar em sentido contrário com o intérprete Jamelão cercado pelos componentes e foliões na pista.

Muito aconteceu depois, mas esta apoteose foi tão única quanto o projeto dos Centros Integrados de Educação Pública, os chamados CIEP`s. Sem dúvida, o último respiro de política educacional com olhar humanitário se pensarmos hoje o aprofundamento do neoliberalismo ideológico e mental. A proposta de horário integral foi retomada nos últimos anos em algumas cidades brasileiras como uma grande novidade, mas no projeto original tínhamos biblioteca, três refeições, banho, atendimento médico, esporte e pais sociais para crianças em vulnerabilidade. No prédio desenhado por Niemeyer, além do ensino artístico convencional, Darcy Ribeiro elaborou o programa de animação cultural onde o artista da comunidade era o responsável pelo diálogo entre a arte acadêmica curricular e as artes das comunidades atendidas pelos “brizolões”.

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O ex-governador Moreira Franco, atual ministro do governo Temer, abandonou os CIEP`s na década de 1980 e esta experiência perdida representa até os dias atuais um enorme prejuízo social e cultural. Moreira se apequena ainda mais ao relembrarmos que o Estado do Rio de Janeiro já teve um Vice-Governador ao mesmo tempo Secretário de Educação e Cultura como Darcy Ribeiro. Darcy não obteve unanimidade mesmo sendo antropólogo, escritor e assessor de Salvador Allende. Discípulo de Anísio Teixeira, é considerado um intelectual do fazer mais por suas inúmeras realizações do que seus múltiplos interesses. Nas suas palavras; “Ou você leva a sério que este povo é para ser alfabetizado e o que vale aqui é criança ou você assume a atitude sacana da classe dominante que sempre achou que o povo é uma espécie de negro escravo carvão para queimar e não importa. Essa é a postura do brasileiro comum: uma postura perversa e pervertida” (Programa Roda Viva, 1991):

Tardiamente o filho de Montes Claros recebeu homenagem do governo do RJ ao batizar a mais nova escola da rede estadual em Maricá com o seu nome. A demorada deferência ao nome de Darcy não é surpresa em uma sociedade conservadora que ainda nos dias de hoje têm grandes reservas à plena democratização cultural. Darcy Ribeiro atuou ambiciosamente ao idealizar os CIEP`s. No início da década passada a professora da UERJ Lia Faria procurou seguir este último vento progressista em uma conjuntura adversa cerceada pelo assédio neoliberal vitorioso. A queda de Lia da secretaria de educação fluminense explicitou o afastamento de intelectuais orgânicos da liderança governamental e a ascensão do economicismo retrógrado na formulação de macropolíticas. Ainda assim, é possível construir ações no plano micropolítico porque felizmente há agentes comprometidos com possibilidades de mudança mesmo com o Estado não os considerando como os intelectuais do seu próprio fazer. Este comprometimento não é missionário; é antes de tudo, ético e estético. Em força contrária, o governo fluminense há tempos, excetuando honrosas exceções, joga fora a juventude ao apostar no “currículo mínimo”, estratégia copiada pelo governo federal na sua recente reforma educacional. Esta escolha é excludente porque nega a possibilidade de uma apoteose cultural. É importante guardarmos este olhar de Darcy em Congresso da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência de 1977: “A crise na educação no Brasil não é uma crise, é um projeto” (9 de junho de 2018).

Das galés às galerias

(Das galés às galerias ou a história da arte brasileira preta e invisível) 

Hoje foi dia de rolezinho no centro do Rio. Neste rolezinho reuniram-se vários artistas pretos e pretas de diferentes gerações nas salas da exposição “Das galés as galerias”.  Na verdade, os rolezinhos iniciados há três anos em São Paulo por grupos de artistas negros ativistas mostram quanto o campo das artes visuais assim como outros espaços sociais também se encontram em disputa. Escrever sobre esta exposição nos faz relembrar Stuart Hall em “A Identidade Cultural na Pós-Modernidade” porque ele antecipou elementos no debate altamente combustível sobre “apropriação cultural”. Para o antropólogo jamaicano, na globalização algumas identidades gravitam ao redor da tradição em busca de uma pureza anterior enquanto outras identidades estão sujeitas à história, à política, a representação, a diferença. Esta reflexão é necessária para nos esquivarmos de um pensamento binário no tratamento de um fenômeno dinâmico: cultura. Isto significa explicitar tensões relacionadas a cor do grupo social hegemônico, além de sublinharmos, lado a lado, a necessidade de expandir a legitimidade de grupos étnicos-raciais historicamente apagados pela história da arte. Especialmente as artistas plásticas negras. A questão toda é: dentro e fora da arte contemporânea, como buscarmos análises mais complexas relacionadas ao fenômeno estético que deem conta de um “lugar de fala” intercultural?

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Das galés, embarcação usada para o transporte de negros escravizados do continente africano ao Brasil contemporâneo das artes visuais, um dos campos de maior invisibilidade negra de nossa sociedade. No módulo de abertura da exposição no Museu Nacional de Belas Artes temos representações de viajantes e artistas do período colonial: Frans Post, Pallière, Rugendas, Debret e um contraponto importante na gravura de Newton Cavalcanti. No segundo módulo há diálogos com a ideologia do embranquecimento pós-Abolição e a visão de intelectuais modernos. Ali encontramos o misterioso retrato do pintor Firmino Monteiro (1855 – 1888) de autoria de Emma Mourox e uma emblemática tela emprestada da galeria do século XIX da instituição: “Redenção de Cam” (1895) do espanhol Modesto Brocos. O ponto alto, localizado pelo curador Reginaldo Tobias, é a pintura “Mãe Maria” na qual Orózio Belém conquistou o Prêmio de Viagem ao Exterior no Salão de Belas Artes em 1945. Na última parte, o texto da mostra assinala um Brasil atravessado pela discriminação racial onde “o acesso e o reconhecimento no campo artístico esbarravam e esbarram nas hierarquias raciais e sociais”. Neste módulo destacamos um trabalho de Fernando Diniz e uma pintura de modelo vivo pouco conhecida de Arthur Timóteo da Costa (1882 – 1922), além de duas ausências: mais artistas negros contemporâneos, salvo a exceção de Emanoel Araújo. Quem sabe o Museu de Belas Artes, cujo mérito pela exposição é notório, tem interesse em contemplar esta possibilidade mais adiante?

Escrever algumas linhas sobre uma história da arte brasileira preta invisível é também compartilhar uma lembrança que levei ao sair da exposição com uma ponta de alegria. Alegria em ver “Paisagem do Rio de Janeiro” e “Uma Chácara em Niterói” ambas telas de Antonio Rafael Pinto Bandeira (1863 – 1896) artista que organizei uma monografia a partir de bolsa concedida no I Edital de Pesquisadores Negros da Fundação Biblioteca Nacional com um importante depoimento do pintor Israel Pedrosa (1926 – 2016). Cabe confessar uma grande dificuldade enfrentada na realização deste trabalho: somente após alertar autoridades governamentais do Rio de Janeiro obtive acesso ao maior acervo deste artista, fato considerado por alguns como racismo e por outros, descaso. No que você acreditaria? Neste caminho o certo é que Pinto Bandeira manteve contato com o acadêmico Coelho Neto, participou da execução dos painéis na Igreja da Candelária e foi aluno do revolucionário Georg Grimm (1846 – 1887). A história da arte brasileira exalta a ligação de Grimm com Antonio Parreiras e Castagneto, mas pouco comenta a relação com Bandeira e outros artistas negros do período. Da mesma forma, a historiografia oficial não enfatiza o peso intelectual de artistas pretos e pretas; no caso de Bandeira localizamos em Salvador a sua proposta de reforma no Liceu de Artes da Bahia. O tempo presente envolve uma ferrenha disputa por narrativas: na próxima semana, como parte das ações de “Das galés às galerias”, o MNBA receberá uma intervenção artística da Frente Artística Negra (FAN) liderada pelo cantor e compositor Mombaça, uma nova oportunidade para refletirmos (30 de maio de 2018).

2017: uma nova escola de artes no RJ?

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“NOVA EBA: PROPOSTA PARA UTILIZAÇÃO DO ARMAZÉM 7 NO CAIS DO PORTO” é o título do vídeo postado há alguns dias no Youtube pela Comissão para uma Futura Sede da Escola de Belas Artes (EBA) da UFRJ (https://www.youtube.com/watch?v=SKllBTSMZSY&feature=youtu.be). Ao final da animação vemos um quadro comparativo entre a área total construída da EBA na Ilha do Fundão (8800m2) e o espaço disponível na região portuária: 8400 m2. Não há dúvidas: o espaço é vantajoso pela grande visibilidade artística onde concentram-se diversas atrações culturais como o Cais do Valongo, Boulevard Olimpico, Museu do Amanhã, MAR e Cidade do Samba. Por outro lado, o estudo preliminar desconsidera a área total ocupada hoje pela EBA no Centro de Letras e Artes: fica a dúvida se somente o Armazém 7 comportaria toda a estrutura existente na Ilha do Fundão.

O espaço para a realização de atividades artísticas é um tema sempre presente em artes visuais e tornou-se pauta em um ano marcado pelo “Ocupa MINC”, “Fica SECRJ” e também pela defesa da arte na escola. Neste turbulento 2016 as comemorações pelo bicentenário da Escola de Belas Artes da UFRJ estão ofuscadas pelo incêndio em sua atual sede no mês de outubro: o prédio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo na Ilha do Fundão popularmente conhecido como “Reitoria”. A paralisação das atividades acadêmicas durante várias semanas explicitou um problema que se arrasta há quarenta anos: a inexistência de um edifício próprio a altura da mais tradicional escola de Artes Visuais do Brasil. O vídeo acima, fruto da iniciativa da comissão de docentes da EBA encontra eco em uma parcela de estudantes insatisfeitos com promessas não atendidas pelo REUNI (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais). Basta relembrar o ato na inauguração da exposição “Escola de Belas Artes 1816-2016: duzentos anos construindo a arte brasileira” em 11 de novembro: vestidos de preto, aos gritos de “cadê o prédio?”, os alunos marcaram presença e o ambiente ficou tenso.

Além da delicada questão de infraestrutura agravada pelo incêndio esta legitima reivindicação não se separa da atual conjuntura política. O relatório da Comissão Nacional da Verdade evidenciou a repressão do golpe cívico-militar de 1964 aos sindicatos, movimentos sociais e universidades. Na Escola de Belas Artes da UFRJ, a cassação de três docentes – Quirino Campofiorito, Abelardo Zalular e Mario Barata – provocou um grande trauma aprofundado pela transferência em 1975 da imponente sede da Avenida Rio Branco, onde hoje localiza-se o Museu Nacional de Belas Artes, para a invisível Ilha do Fundão, a partir de decisão que refletiu o conturbado momento da época. Neste sentido, a edição do Jornal do Brasil de 7 de abril de 1976 é esclarecedora: “A FUNARTE estará instalada na sua sede, na antiga Escola de Belas Artes, dentro de um mês. A Escola mudou-se para o Fundão há mais de um ano, e, por entendimentos entre a FUNARTE e a Diretoria da Universidade, o prédio foi entregue a área cultural do MEC. O Museu de Belas Artes ali localizado terá aumentada em 100% sua área útil para exposições e outras atividades e a fundação ocupará apenas algumas salas, não prejudicando em nada o funcionamento do museu”.

À título de reparação do golpe sofrido pela Escola de Belas Artes durante a ditadura, além da zona portuária, a cidade oferece outras possibilidades como o retorno ao prédio do Museu Nacional de Belas Artes ou a antiga Casa do Estudante Universitário (Colégio Brasileiro de Altos Estudos).  Há também uma outra alternativa: o Palácio Gustavo Capanema. Trata-se de um prédio federal cujo entendimento para a sua utilização envolve vontade política do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e o Ministério da Educação/UFRJ.

Outro fator a ser considerado na hipótese de transferência é que o silenciamento da Escola nos anos de chumbo representou o surgimento de novas lideranças na Ilha do Fundão. É o que diz o texto da Professora Angela Ancora da Luz “A Visão Modernista da EBA Pós-Fundão” publicado nos Anais 180 Anos de Escola de Belas Artes pela UFRJ em 1996. Ao mesmo tempo, é necessário prever espaços de diálogo entre a comunidade artística universitária e a sociedade, tais como o Museu Dom João VI, o galpão da pós-graduação em Artes Visuais e também a Galeria Macunaíma. O projeto da nova Escola de Belas Artes na zona portuária é um presente para o Rio de Janeiro, embora apresente algumas interrogações. Até que ponto a transferência da EBA para fora do Campus da Ilha do Fundão não seria uma contradição frente ao Plano Diretor da UFRJ? Neste momento de contingenciamento orçamentário há dinheiro em Brasília e interesse da prefeitura nesta ação? Qual é o papel da arte em um contexto de gentrificação? De que forma a sociedade e os artistas se beneficiarão do projeto? (em 28/12/2016).

O golpe na Cultura

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ADOTE  O ARTISTA, não deixe ele virar professor” é o que disse o artista plástico Ivald Granato na década de 1970. Com a Medida Provisória 746/2016 editada em 22 de setembro esta possibilidade se torna ainda mais remota porque este ato do governo federal tem aplicação imediata, ou seja: neste momento a disciplina arte, assim como a filosofia, a sociologia e a educação física estão fora do currículo do ensino médio.  Na verdade, a luta hoje é uma mobilização em todo País para persuadir os parlamentares a reverterem este golpe. Golpe na cultura ao não prever a profunda desestruturação que esta medida arbitrária poderá causar na vida dos artistas e na formação humana em uma área considerada pela UNESCO como campo de inclusão social. Golpe anti-democrático porque esta brusca intervenção não considerou o diálogo com os principais interessados: artistas e sociedade.

Esta intervenção aprofunda a marginalização do artista ao não possibilitar a formação cultural dos jovens nas próximas gerações; basta lembrar que o Senado Federal aprovou uma Proposta de Emenda Constitucional limitadora do investimento em educação nos próximos vintes anos (PEC 55). Esta ação em andamento atinge preferencialmente os estudantes da rede pública de origem pobre, preta e periférica. E em breve ampliaremos a segregação que repete o precário acesso ao sistema cultural no Brasil: escola para ricos e classe média tendo ao seu lado a escola de massa para os trabalhadores. Afinal, se confirmado o atual cenário, de exclusão da arte, como estes estudantes terão condições de pagar cursos de música, cinema, teatro, dança, circo ou artes visuais? É esta desigualdade que desejamos manter?

O impacto é ainda maior porque a Lei de Diretrizes e Bases de 1996 aboliu o registro de professor e permite programas de docência do ensino fundamental e médio para graduados de rápida duração. Estes programas são normalmente oferecidos em instituições privadas, ou seja, os estudantes egressos do bacharelado têm o caminho encurtado para acessar um dos maiores campos de trabalho dentro da área de artes: a sala de aula. A Medida Provisória 746 precariza ainda mais a formação ao sugerir a diminuição da carga-horária deste curso genérico e também incluir o “notório saber” para interessados em atuar no ensino profissional. A fragilização dos cursos de licenciatura reafirma o discurso governamental tecnocrata de responsabilização do magistério pelo fracasso escolar a partir dos atuais sistemas de avaliação. Cabe a pergunta no complexo desafio de elaborar políticas públicas: é possível exigir qualidade sem a valorização prática – e não retórica – dos grupos mobilizados?

Dentro e fora da universidade no ano de 2016 nos somamos a esta mobilização em diferentes encontros: “Autoritarismo e Liberdade: a situação da Arte e da Educação hoje”, “Arte/Educação em Foco: o ensino de Arte no RJ” (evento na Universidade Federal Rural do RJ), “Arte + 20: quem ganha com a obrigatoriedade do ensino artístico nas escolas?” (com o artista Victor Arruda), além da participação no Fórum em Defesa do Ensino de Artes.

Na UFRJ o incêndio no Prédio da Faculdade e Arquitetura e Urbanismo, atual sede da bicentenária Escola de Belas Artes (EBA), trouxe inúmeros prejuízos acadêmicos para os estudantes, especialmente os de graduação com quem temos maior integração. Apesar do momento conturbado, os artistas em formação conseguiram demonstrar grande capacidade de reação política em ações como o “Ocupa EBA” e também no investimento intelectual durante os estágios e em ações formativas no Museu Nacional de Belas Artes. É importante não esmorecer: a luta contra o golpe se renova nos próximos anos revendo os versos de Chico Buarque em “Vai Passar” (em 21/12/2016).